As tendências da economia parecem
caóticas e insondáveis até percebermos que há algo que lhes está
subjacente. Esse algo é a política.
O sistema económico em que vivemos assenta na produção de bens e serviços motivada pela prossecução do lucro. Esse lucro, em termos simplificados, corresponde à parte do preço desses bens e serviços que permanece nas mãos dos empresários uma vez remunerados os trabalhadores e pagas as matérias-primas e custos intermédios. E por sua vez, essas matérias-primas e insumos intermédios são produzidos noutras empresas nas quais o rendimento também se reparte entre empresários e trabalhadores, pelo que em termos agregados e de forma simplificada (abstraindo das rendas, impostos e juros), os lucros são tanto maiores quanto menores são os salários e vice-versa.
Entre Cila e Caríbdis
Em consequência disso mesmo, a
produção neste sistema vive numa tensão permanente entre duas fontes
potenciais de bloqueio: lucros demasiado baixos, por um lado; e lucros
demasiado elevados, por outro. Se os lucros forem demasiado baixos, os
níveis de investimento tendem a reduzir-se e a dinâmica da produção
tende a estagnar. Mas lucros demasiado elevados também conduzem à
estagnação da produção, pois provocam a concentração do rendimento,
desigualdade crescente e estagnação da procura.
A estagnação da procura neste
segundo caso resulta do facto das empresas venderem maioritariamente os
seus bens e serviços a trabalhadores - pelo que se a parte dos salários
for sistematicamente comprimida, os empresários vêem as suas vendas
reduzidas. Em termos mais rigorosos, o que sucede é que os segmentos da
população com rendimentos mais elevados têm uma menor propensão para o
consumo (poupam uma parte maior do seu rendimento), pelo que a dinâmica
da procura depende mais fortemente dos segmentos com rendimentos mais
reduzidos (que correspondem maioritariamente aos trabalhadores).
Oferta, procura e política
Acontece que a forma como o rendimento, nestes termos agregados, é repartido entre classes e segmentos da população, sendo uma questão económica, é no essencial determinada na esfera da política. Quando o poder relativo dos trabalhadores é maior (por exemplo, porque o Estado assegura um salário indirecto maior por via da educação, saúde e habitação públicas; porque impõe uma salário mínimo mais alto; ou porque são prosseguidas políticas que asseguram a proximidade ao pleno emprego), estamos em presença de um regime que assegura a dinâmica do ponto de vista da procura, mas que contém dentro de si a semente da estagnação da produção pelo lado da oferta, devido à compressão dos lucros. Quando o poder relativo dos empresários é maior (por exemplo, porque o desemprego e as medidas de flexibilização do mercado de trabalho pressionam os salários em baixa; ou porque a redução dos impostos sobre o capital e sobre os rendimentos mais elevados obrigam à redução dos salários indirectos), estamos em presença de um regime que assegura a dinâmica do ponto de vista da oferta, mas que contém dentro de si a semente da estagnação da procura.
Neste segundo tipo de regime, as
crises podem ser adiadas por um factor adicional: a expansão do crédito,
que permite compensar o efeito negativo da desigualdade sobre a
procura. Mas é uma solução inevitavelmente temporária, pois está
constrangida pela capacidade de endividamento dos agentes económicos,
que mais cedo ou mais tarde atinge o seu limite. Isso acontece
normalmente de forma abrupta e espectacular, sob a forma de crises
financeiras, como sucedeu em 1929 ou 2007-08. Superficialmente, são
crises financeiras; a um segundo nível, são crises de deflação de
dívida; estruturalmente, são crises económicas resultantes da
desigualdade e da estagnação da procura.
Ecos dos anos 30
A história económica das economias avançadas nos séculos XX e XXI corresponde a uma oscilação entre estes dois tipos de regime e entre estes dois tipos de crise. As primeiras décadas do Século XX foram um período de aumento do poder relativo do capital, máximos históricos de desigualdade, financeirização, endividamento - e, nos anos que se seguiram a 1929, deflação súbita e brutal do endividamento acumulado, também conhecida como Grande Depressão. A crise estrutural seguinte - dos anos '70 - foi do tipo oposto: pleno emprego, crescimento dos salários directos e indirectos e compressão dos lucros, resultando por fim na redução do investimento e numa conjugação de inflação com a estagnação da produção (a chamada "estagflação"). E uma vez que essa crise foi resolvida através da instauração de um regime - o neoliberalismo - que voltou a provocar a oscilação do pêndulo no sentido oposto (compressão dos salários directos e indirectos, novos máximos históricos de desigualdade, financeirização, endividamento), seguiu-se uma nova crise global de deflação da dívida quando a solução temporária esbarrou finalmente contra os seus limites.
É o que estamos a viver desde 2007 -
e é um eco, uma repetição, dos anos '30. A grande diferença, e não é
despicienda, é que nos anos '30 a deflação da dívida foi feita
bruscamente, enquanto que na actual crise a desalavancagem está no
essencial por fazer, entre outros motivos porque foi acomodada pelo
sector público. Por isso, em vez de uma "Grande Depressão" relativamente
circunscrita no tempo, temos uma "Grande Estagnação" prolongada. A
ideia, já perfeitamente adoptada pela ortodoxia, de uma "estagnação secular"
que terá tomado conta das economias avançadas corresponde, no fundo e
noutros termos, ao reconhecimento da crise por resolver do
neoliberalismo.
Crise e oportunidade
Dito isto, uma coisa é identificar a natureza da crise, outra coisa é superá-la. Por mais que a imagem do pêndulo seja atractiva, a verdade é que não há nada de automático que conduza à reinstauração de um regime mais favorável aos salários e à procura. Após a crise dos anos '30, foram cruciais para isso a socialização da produção no contexto da 2ª Guerra Mundial, por um lado, e o espectro da "ameaça vermelha" a leste, por outro. O momento presente é, claramente, muito diferente. Mas neste entretecer da economia, da política e da história, o futuro está em aberto. Está-o sempre, aliás. E isso é tanto um perigo como uma oportunidade.
(publicado originalmente no Expresso online)
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